domingo, 17 de agosto de 2008

O retorno necessário



Depois de meses, retorno ao blog. Retomo a língua portuguesa, licenciada durante um ano por causa de meus estudos de mestrado em uma universidade internacional, e o tema que mais aprecio e que pertence à minha vida, ao meu pensamento, à minha política: as fronteiras. E, principalmente, a ausência delas. O assunto me remete ao diretor de cinema que inspirou o título deste blog, Tony Gatlif (é de sua autoria "Exílios", no qual a personagem principal diz se sentir estrangeira em sua própria terra...).
Assisti ao último filme do cineasta, "Transylvania", às vésperas de minha partida da Costa Rica, em julho. De nome Michel Dahamani, Gatlif é nascido na Argélia, tem nacionalidade francesa e em suas veias corre sangue cigano, herdado dos pais, também de origem espanhola. E foram as fortes raízes que o levaram a filmar na bonita e mística região da Transilvânia, na Romênia. Para aquelas terras geladas e distantes segue Zingarina (interpretada pela atriz italiana Asia Argento) à procura do namorado que a deixou na França ou "en busca del hombre que ama, en el corazón de Rumania", como anuncia o cartaz no Arte Cine Lindora, em San José, capital costarriquenha.
A dor do amor perdido sangra ainda mais o coração de Zingarina quando ela reencontra o rapaz, Milan, e leva um fora sem qualquer piedade. É o início de uma tormenta psicológica que leva a mulher à beira da loucura. Ela vaga sem destino pela Transilvânia, mas cruza com personagens interessantíssimos, entre eles o charmoso cigano Tchangalo (o ator turco Birol Ünel), responsável por uma reviravolta em sua vida. Eles se apaixonam e têm um filhinho juntos. Por incorporar as vestimentas e o estilo de vida ciganos, Zingarina sofre na pele o preconceito contra o povo rom. Uma das preciosidades deste filme é o cruzamento de fronteiras em questões como nacionalidades, religiões e idiomas. Em alguns momentos é praticamente impossível identificar a língua em questão - se inglês, italiano, romeno, italiano, alemão ou tantas das diferentes variações lingüísticas que existem em um continente tão multiétnico como a Europa.
Volto a Gatlif e à sua forma de interpretar as fronteiras deste mundo, após uma visita recente a São Paulo, talvez o exemplo mais multicultural de cidade que tenhamos no Brasil. Ali, conheci o casal Alessandra e Mabrouk. Ela, paulistana, e ele, argelino da região da Cabília, mais precisamente de Bejaïa, capital da "petite" ou "basse Kabylie". No território da "haute Kabylie" está a cidade de Tizi-Ouzou, célebre foco de resistência popular nos anos 1950 e 1960 contra a sangrenta ocupação da Argélia pela França. Até hoje, a Cabília, com um dos menores índices de desenvolvimento econômico do país, luta pelo reconhecimento de sua cultura e de sua língua - o Tamazigh, popularmente conhecida como bérbere pelos ocidentais - pelo Estado argelino.
E a cultura da Cabília não é pouca coisa, não. Da região vêm grandes músicos, como Idir, nascido em 1949 em Aït Lahcène e radicado na França. Idir vive as contradições de ter nascido em um país e ter adotado - de forma voluntária ou não - um outro para viver. Em um de seus discos, Identités (1999), ele se questiona "porquoi cette impression étrange que mon pays s´éloigne chaque jour un peu plus et me renvoie une image de plus en plus mythique, alors que j´ai toujours dans la tête une valise prête, mais hésitante?".
Quem nunca viveu as contradições de se sentir diferente e dividido ao confrontar-se com diversos comportamentos, línguas, países e culturas? É por isso que o tema das fronteiras - sejam elas físicas ou sentimentais - fazem parte de todas as situações que eu vivo. São presentes e permanentes, principais e fundamentais no meu cotidiano. Necessárias para compreender-se os dilemas da sociedade, como o racismo, o sexismo, a homofobia e outras discriminações que perseguem os que não detém o poder político. Só a indiferença pode esconder estas contradições e a sensibilidade e o respeito às diversidades, torná-las visíveis.

P.S.: O encontro com Alessandra e Mabrouk aconteceu numa esquina movimentada na zona oeste da capital paulistana, junto com o meu querido Orlando, degustando um bom prato de macaxeira, carne de sol e bolinhos de abóbora com carne seca. Tanamirt (obrigado, em Tamazigh) pour votre amitié!

2 comentários:

Karla Santos disse...

Aqui em Dublin ocorre uma transformação muito interessante, que começou há uns 10 anos. Acostumada a ver seu povo fazer as malas e ir em busca de vida melhor em outras terras, principalmente na América, a Irlanda agora se vê obrigada a dar as boas-vindas aos forasteiros. Mas o gene emigrante nas veias não diminui a intolerância.

Numa cidade tão provinciana quanto Florianópolis ou Anitápolis (Dublin faz Mateus lembrar dos anos que morou em Anitápolis), a convivência com o novo nem sempre é fácil. O preconceito aflora em espancamentos, nos casos extremos.

Para mim, também tem sido um grande exercício de tolerância. Foi um choque a primeira vez que um malasiano arrotou (alto, com vontade!) na sala de aula e o primeiro café da manhã com meu housemate filipino que mastiga de boca aberta e faz um barulho inacreditável quando come. Eu avisei, também vim lá da provinciana Santo Amaro da Imperatriz.

Ana,

Adorei a tua volta!

beijo grande,

Karla

Ana Cláudia Menezes disse...

Sim, a diáspora irlandesa pelo mundo - em particular nos Estados Unidos - deixou uma extensa obra no cinema e na literatura. Recentemente eu vi em DVD um filme muito interessante sobre o assunto, "In America" (em Português, "Terra de Sonhos"), dirigido pelo Jim Sheridan. É a história de uma família irlandesa que vem tentar a sorte em Nova York, refazendo o caminho de milhares de seus conterrâneos nos séculos 19 e 20. Achei meio cansativo no início, mas o filme te leva para um desfecho inesperado e poético. E que, por sinal, tem muito a ver com o teu comentário, Karla, já que esta família vai morar num prédio onde eles são os únicos brancos.
Na seção do meu blog dos livros que eu levaria para uma ilha deserta, citei "A Tree Growns in Brooklyn", sobre a infância de uma menina irlandensa muito fofa em NY. Também é outra indicação sobre a saga deste povo que ralou muito por aí.

Thanks for your warm welcome!

Kisses,
Ana