Depois de meses, retorno ao blog. Retomo a língua portuguesa, licenciada durante um ano por causa de meus estudos de mestrado em uma universidade internacional, e o tema que mais aprecio e que pertence à minha vida, ao meu pensamento, à minha política: as fronteiras. E, principalmente, a ausência delas. O assunto me remete ao diretor de cinema que inspirou o título deste blog, Tony Gatlif (é de sua autoria "Exílios", no qual a personagem principal diz se sentir estrangeira em sua própria terra...).
Assisti ao último filme do cineasta, "Transylvania", às vésperas de minha partida da Costa Rica, em julho. De nome Michel Dahamani, Gatlif é nascido na Argélia, tem nacionalidade francesa e em suas veias corre sangue cigano, herdado dos pais, também de origem espanhola. E foram as fortes raízes que o levaram a filmar na bonita e mística região da Transilvânia, na Romênia. Para aquelas terras geladas e distantes segue Zingarina (interpretada pela atriz italiana Asia Argento) à procura do namorado que a deixou na França ou "en busca del hombre que ama, en el corazón de Rumania", como anuncia o cartaz no Arte Cine Lindora, em San José, capital costarriquenha.
A dor do amor perdido sangra ainda mais o coração de Zingarina quando ela reencontra o rapaz, Milan, e leva um fora sem qualquer piedade. É o início de uma tormenta psicológica que leva a mulher à beira da loucura. Ela vaga sem destino pela Transilvânia, mas cruza com personagens interessantíssimos, entre eles o charmoso cigano Tchangalo (o ator turco Birol Ünel), responsável por uma reviravolta em sua vida. Eles se apaixonam e têm um filhinho juntos. Por incorporar as vestimentas e o estilo de vida ciganos, Zingarina sofre na pele o preconceito contra o povo rom. Uma das preciosidades deste filme é o cruzamento de fronteiras em questões como nacionalidades, religiões e idiomas. Em alguns momentos é praticamente impossível identificar a língua em questão - se inglês, italiano, romeno, italiano, alemão ou tantas das diferentes variações lingüísticas que existem em um continente tão multiétnico como a Europa.
Volto a Gatlif e à sua forma de interpretar as fronteiras deste mundo, após uma visita recente a São Paulo, talvez o exemplo mais multicultural de cidade que tenhamos no Brasil. Ali, conheci o casal Alessandra e Mabrouk. Ela, paulistana, e ele, argelino da região da Cabília, mais precisamente de Bejaïa, capital da "petite" ou "basse Kabylie". No território da "haute Kabylie" está a cidade de Tizi-Ouzou, célebre foco de resistência popular nos anos 1950 e 1960 contra a sangrenta ocupação da Argélia pela França. Até hoje, a Cabília, com um dos menores índices de desenvolvimento econômico do país, luta pelo reconhecimento de sua cultura e de sua língua - o Tamazigh, popularmente conhecida como bérbere pelos ocidentais - pelo Estado argelino.
E a cultura da Cabília não é pouca coisa, não. Da região vêm grandes músicos, como Idir, nascido em 1949 em Aït Lahcène e radicado na França. Idir vive as contradições de ter nascido em um país e ter adotado - de forma voluntária ou não - um outro para viver. Em um de seus discos, Identités (1999), ele se questiona "porquoi cette impression étrange que mon pays s´éloigne chaque jour un peu plus et me renvoie une image de plus en plus mythique, alors que j´ai toujours dans la tête une valise prête, mais hésitante?".
Quem nunca viveu as contradições de se sentir diferente e dividido ao confrontar-se com diversos comportamentos, línguas, países e culturas? É por isso que o tema das fronteiras - sejam elas físicas ou sentimentais - fazem parte de todas as situações que eu vivo. São presentes e permanentes, principais e fundamentais no meu cotidiano. Necessárias para compreender-se os dilemas da sociedade, como o racismo, o sexismo, a homofobia e outras discriminações que perseguem os que não detém o poder político. Só a indiferença pode esconder estas contradições e a sensibilidade e o respeito às diversidades, torná-las visíveis.
P.S.: O encontro com Alessandra e Mabrouk aconteceu numa esquina movimentada na zona oeste da capital paulistana, junto com o meu querido Orlando, degustando um bom prato de macaxeira, carne de sol e bolinhos de abóbora com carne seca. Tanamirt (obrigado, em Tamazigh) pour votre amitié!